“Quando a esmola é demais, o santo desconfia” é um ditado popular que oferece uma pitada de sabedoria para pensar sobre as muitas bravatas anunciadas antes e durante a Conferência das Partes sobre o Clima da ONU (COP 26). Não faz muito tempo, uma jornalista me perguntou: Por que ser contra a entrada de 72 bilhões de reais (o valor foi informado pelo setor privado à jornalista), valor equivalente a 12 bilhões de dólares, até 2030, quando o governo brasileiro destrói o meio ambiente e as empresas querem ajudar? Parece razoável. Mas, será mesmo? De onde vem esse dinheiro? E sob quais condições ele chega até nós, “emergentes”?
Antes do início da COP 26, alguns países (como Alemanha, Canadá e EUA) vieram a público anunciar a constituição de fundos e “pools” de dinheiros para sinalizar a sua boa vontade em captar recursos que seriam destinados ao financiamento do esforço climático nos países emergentes e vulneráveis. Nessa mesma linha, o Reino Unido, que é anfitrião da Conferência ao lado da Itália, lançou o chamado “Pacote de Glasgow”, em português.
A iniciativa tem como objetivo disponibilizar 100 bilhões de dólares anuais para “ajudar” a financiar a implementação de um “pacote” de políticas da economia verde que estão expostas, em vitrine global, pelos pavilhões da Conferência. Apesar de este não ser um valor tão expressivo quanto parece – apenas uma gestora de ativos, a estadunidense “BlackRock”, detém um capital de 673 milhões de dólares que pretende direcionar às finanças verdes – há muito alvoroço em torno dessas “ofertas”.
Durante a cerimônia de abertura da COP 26, em Glasgow, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, deu uma declaração simples e direta a respeito do que está em jogo. Ele disse que é urgente garantir aos países do sul global, mais vulneráveis às mudanças climáticas, acesso a financiamento para uma nova política de desenvolvimento sustentável por meio das chamadas finanças mistas (“blended finance”) e do mercado de capitais privado (“private finance”). As duas coisas estão conectadas. E a pergunta implícita nessa declaração é: Como transformar infraestruturas sociais e a própria natureza em uma nova classe de ativos financeiros para atrair as empresas?
Pois é justamente nestes termos que atores internacionais tão importantes como os países do G-20, as instituições financeiras internacionais, os fundos de investimento institucionais e as grandes corporações que fazem gestão de carteiras de ativos, estão apoiando a reedição do Consenso de Washington (1989). Na verdade, trata-se do “Consenso de Wall Street”, como argumenta a intelectual romena Daniela Gabor, em dois artigos curtos que mapeiam essa transição publicados entre 2020 e 2021. No que segue, faço referência a estes dois artigos para explicar como a agenda corporativa capturou o discurso climático e a nossa imaginação sobre as soluções para o problema do aquecimento global.
Como funciona?
A narrativa massacrante (à diário em todos os jornais) de que os países vivem hoje uma crise fiscal aguda justifica a busca por fontes alternativas de financiamento para o investimento em programas de interesse social e ambiental. “Alternativo” significa: que não dependem exclusivamente de instrumentos tradicionais como os impostos sobre a população, liberalizando o fluxo de capitais privados estrangeiros, bem como ampliando a capacidade dos bancos centrais nacionais para assumir riscos no sistema financeiro global. Nesse sentido, a prática de comprar e vender títulos de dívida, inclusive entre bancos públicos e tesouro, se incorpora ao repertório dos países como mecanismo de regulação da política monetária.
Está, aí, desenhado, o rearranjo do sistema financeiro global que será impulsionado por produtos e serviços financeiros em nome do clima. De maneira geral, isto implica uma nova modalidade de financiamento para o desenvolvimento sustentável que está assentada sobre três pilares: (i) elevação da disponibilidade de recursos via provedores privados nacionais e internacionais; (ii) investimento na estruturação de projetos que se mostrem atrativos ao modelo de concessões e parcerias público-privadas e (iii) mitigação dos riscos político-institucionais por meio de adaptações regulatórias que promovam a segurança jurídica dos investidores e um “bom” ambiente de negócios.
O que isso significa?
(i) uma concepção de desenvolvimento que foge da lógica de solidariedade internacional (com financiamento público governo-a-governo) e se baseia na rentabilidade de uma nova classe de ativos financeiros identificados aos chamados Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (educação, saúde, água, energia, habitação, transporte e até a própria natureza); (ii) a alocação do risco econômico e financeiro dos investidores para o Estado por meio dos contratos de concessões e PPPs, considerados o único meio para o provimento de serviços sociais; e (iii) o desmonte da legislação socioambiental, novas regras para compras governamentais e a liberalização do fluxo de capitais entre praças financeiras, além de uma atualização das regras para celebração de parcerias com a iniciativa privada.
Tudo isto já está acontecendo no Brasil. Durante os últimos dois anos, o governo federal, por intermédio de seus ministérios (em particular Casa Civil, Economia, Agropecuária e Infraestrutura), buscou se capacitar aos olhos de investidores e bancos multilaterais internacionais para receber a enxurrada de dólares que vão possibilitar a construção e a operação de equipamentos e serviços de primeira necessidade para os “clientes do Estado”. Notar que se trata de serviços privatizados. Então, ou o Estado garante integralmente o fluxo de caixa do investidor, ou subsidia a oferta de um serviço ao usuário que paga tarifas caso seja do seu interesse acessá-lo, de hospitais e universidades até luz e parques. cachoeiras.
Importante mencionar que, em qualquer circunstância, havendo um “choque de demanda”, ou seja, a frustração da expectativa de lucro do “prestador” pela queda do consumo, o Estado, em geral, deve pagar a diferença. Este é o padrão nos contratos de concessões e PPPs. Ou seja: Embora esse modelo de financiamento seja vendido como uma tecnologia para aliviar as contas do Estado liberando recursos públicos e otimizando a prestação de serviços (afinal, o mercado é “mais eficiente do que o Estado”), na verdade, nós estamos diante de um mecanismo que produz (i) a desidratação econômico-financeira do Estado; (ii) uma legislação vacilante, chegando a flertar com a ilegalidade e a imoralidade em muitos aspectos; e (iii) o endividamento público, mas também privado.
Então, por que não apostar nas alternativas de mercado para promover uma economia mais verde?
A questão aqui é que os benefícios sociais gerados desde o mercado são muito limitados e em hipótese alguma podem substituir a perspectiva de direitos emanada desde o público, enquanto um pacto social que protege a dignidade humana como uma recompensa pela participação dos indivíduos no processo de desenvolvimento em contextos capitalistas. Em outras palavras, o debate feito, hoje, a propósito da conclusão das negociações climáticas, está de cabeça para baixo. Há, nisso tudo, uma inversão da realidade (típica do efeito de propaganda) em pelo menos dois aspectos:
(i) primeiro, não há comprovação em nenhuma parte do planeta sobre a eficiência do mercado para o provimento de serviços essenciais. O mercado não é um bom instrumento para alocar bem-estar. Sendo a sua finalidade o lucro, o mercado é eficiente para dispersar riscos e concentrar benefícios. A entidade que aloca riscos e benefícios a partir dos critérios de direitos humanos é (ou deveria ser) o Estado. Estamos perdendo isso de vista;
(ii) segundo, o mercado nos empurra para o caminho mais longo em relação a uma transição para uma economia menos poluente. Estamos gastando energia para promover mercados e iniciativas verdes, que conduzem à financeirização da vida e da natureza. Caminhamos para atender à visão dos investidores, enquanto as soluções produzidas cotidianamente por povos e comunidades em seus territórios ficam completamente apagadas das discussões.
Essa miopia não vai levar a gente a lugar nenhum. Esse santo — do G-20, do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional — é de barro.
Por Tatiana Oliveira, assessora política do Inesc e membro do Grupo Carta de Belém