O Cadastro Ambiental Rural – CAR, criado para ser um instrumento de planejamento e monitoramento ambiental das propriedades rurais no sentido de delimitar as áreas preservadas e identificar as que precisam ser reflorestadas, será “meramente declaratório”, adverte Flávia Camargo de Araújo à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail. Segundo ela, “se continuar da forma como está regulamentado, o CAR poderá se tornar uma ferramenta burocrática de regularização dos produtores apenas no ‘papel’, e não na realidade do campo”.
Obrigatório a todas as propriedades brasileiras a partir deste ano, o CAR tem recebido muitas críticas dos ambientalistas, pois seu preenchimento poderá ser feito pelo proprietário da terra, e não é obrigatória a “contratação de técnico nem mesmo para a apresentação do projeto de restauração florestal, necessário para a assinatura do termo de compromisso junto ao órgão ambiental”.
Na avaliação de Flávia de Araújo, o fato de o CAR “ser declaratório e de dispensar a obrigatoriedade de um técnico, inclusive na fase de assinatura do termo de compromisso, demonstra a falta de prioridade em garantir a qualidade no processo de regularização ambiental. Além disso, há pouca preocupação com o processo de análise e validação do CAR. Não há sequer uma previsão de prazo para essa etapa de verificação do caráter fidedigno das informações”.
E rebate: “Teremos cadastros sobre os quais não poderemos ter segurança acerca do caráter real das informações. Isso implica na não efetividade desse instrumento. Poderemos ter áreas que foram declaradas como preservadas sem que estejam sendo de fato conservadas. Poderemos ter erros, negligências ou omissões intencionais nas declarações que geram uma ‘diminuição’ no passivo ambiental em desacordo com a realidade no campo”.
Flávia Camargo de Araújo é Engenheira Agrônoma e mestre em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Federal de Brasília. Atualmente leciona no curso de Pós-graduação do Uniceub em Análise Ambiental e Desenvolvimento Sustentável e integra o Programa de Política e Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental – ISA.
Confira a entrevista:
O que é o Cadastro Ambiental Rural e qual a sua finalidade após a aprovação do Código Florestal?
O Cadastro Ambiental Rural – CAR é um instrumento de gestão ambiental que registra os dados sobre o uso do solo da propriedade, delimitando as áreas que estão preservadas, as áreas de uso agropecuário e as áreas que, por terem sido ilegalmente desmatadas, precisam ser reflorestadas.
O CAR, quando de qualidade, possibilita o adequado planejamento territorial da propriedade e facilita o monitoramento dos desmatamentos por parte dos órgãos ambientais. O Cadastro Ambiental Rural já existia em alguns estados antes da aprovação da nova legislação florestal. O que a nova lei fez foi instituir o CAR em âmbito nacional, tornando-o obrigatório para todas as propriedades.
Como deve ocorrer o processo de registrar as informações ambientais das propriedades rurais que precisam de reflorestamento?
De acordo com a nova legislação, todas as propriedades terão o prazo de um ano, prorrogável por mais um, para fazer a sua inscrição no CAR. Esse prazo começou a contar agora em maio, quando o CAR foi lançado oficialmente pelo Ministério do Meio Ambiente – MMA. A forma de registro das informações varia de Estado para Estado.
No sistema lançado pela União, que está sendo adotado pela maioria dos Estados, o registro das informações pode ser feito diretamente pelo proprietário, sem que seja necessário um responsável técnico. Apenas alguns Estados irão exigir a contratação de técnico para a inscrição no CAR.
Em que consiste o Decreto nº 8.235/14 e a Instrução Normativa nº 2 do Ministério do Meio Ambiente – MMA?
O Decreto 8.235/14 estabelece normas gerais sobre o CAR, os Programas de Regularização Ambiental e estabelece o Programa Mais Ambiente Brasil. A Instrução Normativa nº 2/MMA trata dos procedimentos para a integração dos cadastros no SICAR (Sistema de Cadastro Ambiental Rural) e define procedimentos gerais para o CAR.
Essas normas estavam sendo ansiosamente aguardadas, pois a partir da publicação das duas, o CAR estaria oficialmente lançado. O problema é que as regras definidas tanto pelo decreto como pela instrução normativa mostram que a prioridade é dar celeridade ao processo de cadastramento, ao invés de garantir a eficácia do CAR como instrumento de planejamento e monitoramento ambiental.
Quais são as principais dificuldades envolvendo a implantação do CAR?
Flávia Camargo de Araújo – O principal problema é a falta de prioridade política para a gestão ambiental no campo, que se reflete na demora de dois anos para lançar um sistema de cadastramento de bases frágeis. O sistema de cadastro ambiental lançado pelo MMA será um instrumento meramente declaratório, sem o devido apoio técnico. Não será obrigatória a contratação de técnico nem mesmo para a apresentação do projeto de restauração florestal, necessário para a assinatura do termo de compromisso junto ao órgão ambiental.
Levantamento realizado pelo Observatório do Código Florestal demonstra o quanto os órgãos ambientais estaduais ainda estão despreparados para o CAR. Nesses órgãos falta não só recursos humanos, como também estratégias claras de como será feita a análise e validação dos cadastros.
O CAR tem recebido algumas críticas, entre elas, o fato que você menciona, de não ser necessário um técnico para fazer a inscrição da propriedade no Cadastro. Quais as implicações desse processo?
Isso implica que sem uma orientação técnica dificilmente o CAR terá a qualidade necessária como instrumento de gestão ambiental. Elaborar plantas georreferenciadas não é uma tarefa trivial, principalmente se considerarmos a necessidade de uma precisão mínima para identificar as Áreas de Preservação Permanente – APP. Além disso, identificar as APPs em função da declividade poderá ser uma tarefa ainda mais complexa.
Também não é simples compreender a legislação florestal, que possui uma série de termos técnicos e situações particularizadas conforme a data do desmatamento e o tamanho da propriedade. Não sendo tarefas fáceis e tendo em vista a baixa capacitação técnica dos produtores rurais quanto a essas questões, o mais provável é que muitos dos dados do cadastro que serão inseridos diretamente por eles conterão uma série de erros e imprecisões.
Com isso, o trabalho desses órgãos será muitas vezes maior do que seria no caso de os cadastros serem elaborados por técnicos qualificados. Da forma como está previsto, haverá muito “retrabalho”, diminuindo a eficiência do processo.
Por que avalia que o CAR poderá se tornar uma ferramenta inócua?
Faltam, na regulamentação, alguns pontos importantes para garantir a efetividade do CAR. O fato de ser declaratório e de dispensar a obrigatoriedade de um técnico, inclusive na fase de assinatura do termo de compromisso, demonstra a falta de prioridade em garantir a qualidade no processo de regularização ambiental. Além disso, há pouca preocupação com o processo de análise e validação do CAR. Não há sequer uma previsão de prazo para essa etapa de verificação do caráter fidedigno das informações.
Outro ponto frágil previsto nos normativos é que bastará o recibo da inscrição no CAR para poder acessar o crédito rural. Não será exigida a validação das informações inseridas no cadastro para que o produtor tenha o documento necessário para seu crédito bancário ser liberado. Tanto aquele produtor que fez seu cadastro da forma correta como aquele que inseriu informações falsas terão o mesmo direito nesse caso.
Que impactos são visíveis no campo por conta da não implementação do CAR?
A demora no lançamento oficial do CAR teve impactos negativos no campo. Os produtores ficaram esperando a regulamentação e essa espera desmobilizou inclusive os produtores que estavam buscando a sua regularização ambiental antes mesmo da nova legislação florestal ter sido aprovada. Vários viveiros de mudas tiveram queda significativa nas suas vendas, sem contar os que encerraram suas atividades.
Em Mato Grosso, por exemplo, o Instituto Socioambiental desenvolve há vários anos um trabalho de restauração florestal junto aos agricultores localizados no entorno do Parque Indígena do Xingu. Para isso, foi formada a Rede de Sementes do Xingu para fornecer sementes para os agricultores restaurarem suas áreas de preservação permanente e de reserva legal. Nesses dois últimos anos, a demanda de sementes da Rede pelos agricultores da região caiu drasticamente.
Quais deveriam ser as exigências do CAR dentro da legislação do Código Florestal?
Além de exigir o acompanhamento técnico para a inscrição no CAR e no processo de regularização ambiental, os normativos deveriam estabelecer prazos para a análise e validação do CAR. Essa última etapa é fundamental para garantir que a gestão ambiental das propriedades estará sendo definida com base em informações reais e não apenas nos dados que foram declarados. Inclusive falta, na regulamentação publicada pelo MMA, a previsão explícita de que os termos de compromisso só serão assinados após a validação do CAR. Não faz sentido que o termo de compromisso para a regularização ambiental seja assinado sem antes ser verificada a veracidade dos dados cadastrados e a sua adequação técnica.
Quais as implicações ambientais caso o CAR não seja devidamente implementado?
Teremos cadastros sobre os quais não poderemos ter segurança acerca do caráter real das informações. Isso implica a não efetividade desse instrumento. Poderemos ter áreas que foram declaradas como preservadas sem que estejam sendo de fato conservadas. Poderemos ter erros, negligências ou omissões intencionais nas declarações que geram uma “diminuição” no passivo ambiental em desacordo com a realidade no campo.
Isso poderá reduzir as obrigações do produtor em restaurar suas áreas de preservação. Produtores poderão, portanto, estar regulares no papel sem estar regulares no campo. As perdas ambientais, que já foram imensas com as anistias concedidas pela nova lei, poderão ser ainda maiores, prejudicando a qualidade da água, do solo e da biodiversidade.
Deseja acrescentar algo?
A falta de comprometimento do Poder Público com a implantação de um CAR de qualidade é apenas mais um passo desastroso na política ambiental brasileira. São realmente lamentáveis as perdas que tivemos nos últimos anos em decorrência das mudanças na legislação florestal.
A aprovação da nova legislação florestal foi uma derrota imensa para toda a sociedade, inclusive para os produtores rurais, aos quais dependem das condições ambientais para realizar as suas atividades econômicas. As anistias concedidas representam grandes áreas que deixarão de ser recuperadas e não mais irão prestar os tão necessários serviços ambientais, como proteção dos cursos de água, infiltração e armazenamento de água no solo, controle de erosão e polinização.
Já estamos vivendo as consequências das negligências com o Código Florestal antigo. A falta de água que vemos em São Paulo, por exemplo, tem correlação com o enorme desmatamento na região. Se não houver mudanças de rumo, situações como essa podem se tornar cada vez mais comuns.
Infelizmente, parece que as consequências negativas da nova legislação florestal não se resumem apenas à diminuição dos padrões de proteção ambiental para aqueles que desmataram, há também um enfraquecimento de instrumentos como o CAR. Se continuar da forma como está regulamentado, o CAR poderá se tornar uma ferramenta burocrática de regularização dos produtores apenas no “papel”, e não na realidade do campo.
Da IHU On-Line