Mais de 140 representantes de diferentes grupos de todo o país discutem desigualdade e racismo em encontro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental
Na porta do auditório onde estão os mais de 140 participantes do VI Encontro Nacional da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, Paulo Roberto Martins, da Renanosoma, conversa com Pedro Raposo da Silva, do Conselho Indígena de Roraima. O primeiro é um pesquisador de São Paulo especializado em nanotecnologia, crítico à forma como essa tecnologia está sendo implementada no Brasil. O segundo é integrante do movimento indígena de Roraima, um dos mais ativos do país na mobilização contra a ofensiva aberta pelo Congresso Nacional contra direitos indígenas, considerada a pior dos últimos 25 anos.
A conversa compenetrada dos dois resume a diversidade que marcou a reunião nacional da rede formada em 2001. Estiveram presentes de integrantes do Movimento Xingu Vivo para Sempre, de resistência à construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, aos do Observatório dos Conflitos do Extremos Sul do Brasil, que faz monitoramento de impactos ambientais na outra ponta do país. Gente que vive em assentamentos, missionários cambonianos, quilombolas, integrantes do movimento negro e LGBT. Pescadores de diferentes colônias a gerazeiros, aqueles que vivem no sertão de Minas Gerais. Representantes de lutas tão diversas como Articulação Nacional de Agroecologia, Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia e Campanha Permanente contra Agrotóxicos. Isso só para citar aleatoriamente alguns dos grupos representados pelas dezenas de participantes.
A ideia central é que a poluição e os impactos das mudanças climáticas não atingem a todos de maneira democrática e uniforme, e que alguns grupos sociais são submetidos a riscos e incertezas maiores de maneira imposta e violenta |
O encontro durou três dias, nos quais foram discutidos da história da rede à conjuntura atual do país na área socioambiental. Em pauta, temas que nem sempre ganham destaque, como o próprio conceito que dá nome à rede: justiça ambiental. A articulação questiona o modelo de desenvolvimento vigente, que reforça a desigualdade ambiental. A ideia central é que a poluição e os impactos das mudanças climáticas não atingem a todos de maneira democrática e uniforme, como fazem crer campanhas ambientais que despolitizam o debate, como as de redução do uso de sacolinhas plásticas ou de economia de água e luz.
A rede aponta que alguns grupos sociais são submetidos a riscos e incertezas maiores de maneira imposta e violenta em processos que costumam ser marcados pela perda de territórios e de acesso a recursos naturais. Marginalizados, ignorados e perseguidos, tais grupos expostos à contaminação são vítimas do que a rede chama de racismo ambiental.
Politização do debate
Julianna Malerba, coordenadora do Núcleo Justiça Ambiental e Direitos da Fase, uma das organizações responsáveis pela realização do encontro, explica que não se trata de ser contra práticas individuais como redução de consumo de energia ou do desperdício de recursos, mas sim de ir além e fazer uma leitura política da preservação do meio ambiente, dando visibilidade às desigualdades ambientais e reconhecendo os atingidos ambientais não como vítimas, mas como sujeitos e protagonistas de mudanças.
Dentro dessa lógica, o próprio debate sobre problemas bastante atuais ganha novas dimensões. Assim, por exemplo, na discussão sobre geração de energia, sobraram críticas não apenas aos megaprojetos de hidrelétricas na Amazônia, à extração de petróleo em águas profundas do Pré-Sal e aos projetos de termoéletricas, energia nuclear e extração de gás de xisto (frackting), mas também às alternativas apresentadas como mais “sustentáveis”, como as usinas eólicas, que também têm gerado graves impactos sociais e ambientais no interior do Nordeste. “A questão não é qual a melhor energia, mas para quem ela é gerada? Para quê?”, explica Juliana.
No questionamento sobre o uso e destinação da energia e não somente sobre as fontes de geração, ganha destaque a crítica às plantas industriais que dependem de alto consumo, muitas delas voltadas para beneficiamento básico de produtos primários para a exportação, como a indústria do alumínio |
No questionamento sobre o uso e destinação da energia e não somente sobre as fontes de geração, ganha destaque a crítica às plantas industriais que dependem de alto consumo, muitas delas voltadas para beneficiamento básico de produtos primários para a exportação, como a indústria do alumínio. Foram feitas durante o encontro denúncias de impactos ambientais provocados por novos complexos industriais nas áreas de mineração e siderurgia, e obras de infraestruturas a eles relacionados, como minerodutos, rodovias e portos.
O uso (e desperdício) de água e energia em megaprojetos de agricultura industrial e mineração também foi questionado, bem como as mudanças legislativas em curso que devem beneficiar novos projetos, tal como a perspectiva de aprovação do novo Marco Regulatório da Mineração. Foram denunciados diferentes casos de contaminação de água, ar e solo pela aplicação de veneno, rejeitos de mineração e emissões de poluição industrial, com destaque para impactos em comunidades que dependem do meio ambiente para sobreviver, tais como pescadores e pequenos agricultores.
Sobre mineração, os movimentos de Minas Gerais, estado que sediou o encontro, criticaram a maneira como o Núcleo de Resolução de Conflitos Ambientais (Nucam) do Ministério Público Estadual tem mediado conflitos ambientais envolvendo comunidades e áreas afetadas por novos projetos no Estado. O principal argumento dos grupos é que, ao iniciar negociações, o órgão abre a possibilidade de garantias constitucionais serem suprimidas – direitos não devem e nem podem ser negociados, ressaltam.
Em meio ao encontro, também foi lançado o livro “Formas de Matar, de morrer e de resistir – limites da resolução negociada de conflitos ambientais”, organizado e escrito por diversos pesquisadores, incluindo membros da rede, e publicado pela Editora UFMG, bem como uma atualização do mapa de conflitos ambientais em Minas Gerais, que passou a adotar uma versão wiki aberta à contribuições. Também foram feitas críticas à condução de estudos de impacto e de audiências públicas sem real participação da população, tidas como formas de legitimar novos empreendimentos.
“Desburocratização” de licenças e economia verde
Os processos de flexibilização da legislação ambiental, a exemplo do que aconteceu na alteração do Código Florestal, e a maneira como eles têm sido defendidos e apresentados, com uso de termos como “desburocratização”, “aceleração” ou “simplificação”, também foram criticados. As entidades apresentaram diferentes casos de fragilização da legislação ambiental ocorridos nas últimas décadas e falaram em desmonte de mecanismos de controle social e participação relacionados ao meio ambiente, citando ainda o enfraquecimento de órgãos de fiscalização como Ibama e Anvisa, com a redução de orçamentos e corpo técnico.
Sobraram questionamentos também à chamada “economia verde”, em que recursos naturais, florestas, sementes, água e ar são entendidos e tratados como mercadorias comerciáveis, como uso de mecanismos financeiros tais como o emprego de créditos de carbono |
A rede critica a maneira como tais temas têm sido conduzidos, tanto pelo governo federal quanto por parte dos partidos de oposição. Os integrantes da articulação reclamam que, durante as discussões públicas, as medidas de despolitização do debate são constantes, com a criminalização dos movimentos sociais e a desqualificação de atores. Perseguições, violências, espionagem e assassinato de atingidos ambientais foram lembradas.
Sobraram questionamentos também à chamada “economia verde”, em que recursos naturais, florestas, sementes, água e ar são entendidos e tratados como mercadorias comerciáveis, como uso de mecanismos financeiros tais como o emprego de créditos de carbono (leia mais a respeito na publicação O Lado B da Economia Verde, lançada pela Repórter Brasil durante a Rio+20). Em contraposição ao desenvolvimento de sementes transgênicas patenteadas e ao incentivo à monocultura na produção agrícola industrial intensiva, as organizações defenderam práticas de agroecologia e agricultura familiar.
A participação das empresas na produção de conhecimento científico e seu envolvimento crescente com universidades, financiando projetos e pesquisas, também é vista com preocupação, bem como o fato de conhecimentos tradicionais serem desqualificados, uma vertente do assim chamado racismo ambiental.
O foco principal do grupo é a relação entre justiça social e ambiental, e, nesse sentido, a preocupação é em garantir os direitos de comunidades e povos que habitam áreas conservadas. A implementação de Unidades de Conservação é criticada, por exemplo, quando feita sem consulta ou consideração com tais pessoas que vivem em comunhão com a natureza no entorno de áreas intactas ou dependem delas.
Os movimentos urbanos lembraram que, nas cidades, os processos de gentrificação, com encarecimento do custo de vida, leva a deslocamento dos moradores pobres para áreas sujeitas a riscos ambientais e ecologicamente sensíveis. Destaque para o fato de tais populações deslocadas muitas vezes acabarem em áreas de risco, mais sujeitas a impactos ambientais como enchentes e desmoronamentos.
Em contraposição ao que chamam de “des-envolvimento”, os integrantes da rede defendem o envolvimento e participação dos atingidos ambientais.
Por Daniel Santini