Diante dos debates sobre a recuperação econômica no pós-covid, o Grupo Carta de Belém (CGB) realizou quatro encontros internos para debater o processo de financeirização da natureza e seus desdobramentos no reforço da lógica do capitalismo e nos modelos de desenvolvimento.
O ciclo de webinários culminou na realização da live Recuperação econômica pós-covid: rumo a um pacto verde? no dia 21/10, que trouxe para o público o acúmulo das discussões internas via as contribuições de Tatiana Oliveira (Inesc/GCB), Larissa Packer (GRAIN/GCB), Maureen Santos (FASE/GCB) e Lyda Forero (Confederação Sindical de Trabalhadores/as das Américas – CSA).
A financeirização da natureza e o mercado de bens naturais
Se por um lado a financeirização da economia é um processo já conhecido do capitalismo, por outro, ele vem se expandindo para diferentes áreas da economia e da vida. “Esses processos de financeirização da natureza aparecem hoje como como um processo intensivo e que reforça a lógica financeirizada do capitalismo neoliberal contemporâneo e como modelo de desenvolvimento. Os processos de financeirização ocupam a vanguarda de acumulação do capitalismo”, comentou Tatiana Oliveira, quem mediou o debate.
Para Larissa Packer, o que vemos neste momento é uma sucessão de crises que tem início em 2008 com a quebra do mercado imobiliário dos EUA e uma economia que se financeiriza cada vez mais em busca de soluções. Em sua perspectiva, a crise de 2008 marcou uma fuga de capitais do mercado imobiliário para o setor agroalimentar.
“Com a vulnerabilidade destes mercados de capitais se vê cada vez mais a necessidade de encontrar novos lastros, novas fontes e estruturas que permitam dar liquidez para este mercado financeiro convulsionado e para este mercado produtivo”, explica. Para ela, é por isso que os bens comuns como a água, o ar, as florestas começam a ser mercantilizados e financeirizados por seletos grupos econômicos.
Nas constituições democráticas pós 2ª Guerra Mundial os recursos ambientais importantes para a vida na Terra não são suscetíveis de apropriação, justamente porque a inserção deles no mercado implicaria na escassez dos mesmos. Mas o processo de financeirização vai justamente contra esta premissa internacional da qualidade coletiva dos recursos naturais. “O valor monetário permite que um título seja emitido à base de um recurso natural e seja transacionado na bolsa de valores”, explica Larissa citando como exemplo os créditos de carbono emitidos conforme as toneladas de emissões evitadas.
Essa lógica de mercantilização e financeirização da natureza é perversa, pois quanto mais se desmata e polui, maior é o valor dos bens naturais. E é por isso que o Green New Deal europeu e outros acordos de descarbonização podem ser problemáticos. Tais mercados estão diretamente ligados ao aumento das pressões sobre as terras dos povos e comunidades tradicionais no sul global. “Não é atoa que, em abril de 2020 agora, vários títulos do agronegócio se transformaram em valores mobiliários (Lei 13.986), a terra deixa de ser só um valor imobiliário para tornar possível emissões de títulos sobre frações da terra, sobre serviços ambientais, que passam a ser patrimônios rurais do proprietário do solo”, comenta.
Além disso, esta transição para uma economia não baseada em combustíveis fósseis é extremamente cara e depende do desenvolvimento de novas tecnologias que também não são neutras. A forma de financiar esta transição mais rápida não é a redução das transmissões em si, mas os mercados de mitigação: “Eu continuo emitindo, mas eu compro meus direitos de poluir a partir de financiamento de projetos em outros países”, esclarece Larissa.
As revoluções genéticas e seus objetivos agroindustriais
A biotecnologia, tecnologias baseadas nas ciências biológicas, têm sido associadas a agricultura a partir na manipulação dos genes dos organismos vivos para a criação de novos produtos, incorporação de mais valor aos já existentes e na busca de solução dos problemas gerados pelo modo de cultivo do agronegócio.
Para Maureen Santos, assim como a revolução verde, a atual revolução genética está conectada ao mesmo paradigma da cadeia agroindustrial, com as mesmas empresas transnacionais como atores centrais, commodities e mercantilização dos bens comuns e da biodiversidade.
Para ela, no Brasil, o marco da introdução da biotecnologia na agricultura é a Política Nacional de Biossegurança (LEI Nº 11.105) de 2005, que libera os transgênicos no país e reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBIO) que aprova os transgênicos.
Maureen questiona: “como estas grandes empresas que estão causando os problemas socioambientais podem ser as protagonistas das soluções destes problemas que elas mesmo criaram?”. Para ela, existem riscos muito graves em jogo com a manipulação genética e que não estão sendo considerados ou debatidos. Há possibilidade de contaminação dos ecossistemas e de espécies e falta a aplicação do princípio da precaução.
O trabalho na era das transições climáticas
Lyda Forero, da Confederação Sindical de Trabalhadores/as das Américas (CSA) trouxe a dimensão do trabalho para este contexto soluções verdes para as crises que vivemos. Para ela, o capitalismo está usando este momento para impor reformas, como a implantação do teletrabalho e da ideia de trabalhos verdes, aqueles que supostamente estão em sintonia com a mitigação climática. “Existem as diferentes perspectivas nas quais a negociação coletiva não existe mais, o trabalho não existe mais e os sindicatos não são levados em conta para as diferentes discussões”, explica ao citar o caso chileno, em que o Estado não convidou os trabalhadores para discutir a transição energética, que curiosamente é uma pauta dessas organizações.
Na avaliação de Lyda, é necessário disputar os sentidos e os caminhos da “revolução verde” e do Green New Deal. “É preciso ter uma resposta mais articulada e mais forte por parte da classe trabalhadora. Não podemos continuar permitindo este caminho corporativo da transição [climática]”.
Durante sua fala ela trouxe a experiência da Jornada Continental, uma articulação de movimentos e organizações populares, na disputa pelas propostas de recuperação da atual crise. Para esta articulação, as respostas precisam ser sistêmicas. Por isso, entendem que este é o momento de trazer o acúmulo de críticas do movimento trabalhista ao sistema, avançando em propostas de integração popular, nas lutas anti racistas e anti patriarcais e no fortalecimento da democracia.
Lívia Alcântara é jornalista e socióloga.