por Marcela Vecchione1
A política do possível é parte do cotidiano do fazer, negociar e executar políticas públicas na Amazônia Legal brasileira. Nesta região, vemos por seguidas vezes o possível ser parte de uma política imaginada de maneira muito distante e deslocada das possibilidades e necessidades da maior parte da população da Amazônia, que é diversa e plural. A realidade do possível frequentemente representa dificuldade para os vários povos indígenas, tradicionais e assentados que vivem na e da região, quase sempre compartilhando formas de uso coletivo da terra.
Tais dificuldades deveriam ser fundamentais na construção e no planejamento das políticas públicas no espaço amazônico, este bastante informado pelas assimetrias de poder e consequentes disputas que se travam no avanço das fronteiras econômicas por terras e territórios coletivos. Justamente porque estamos falando sobre disputa sobre formas de uso da terra, tais assimetrias se refletem em políticas públicas ambientais que via de regra primam pelo controle do uso e da ocupação do território, como é o caso do Cadastro Ambiental Rural (CAR). Mais problemático do que o controle em si, é a fusão um tanto quanto perigosa da regularização ambiental a que se pretende o CAR, com processos de regularização fundiária, para os quais o cadastro já é oficialmente assumido como passo inicial. Da definição das áreas de Reserva Legal (RL), até a consequente definição dos passivos ambientais de uma propriedade ou de uma área de uso coletivo, três processos complicados, porém importantes de serem observados e solucionados, tem se desenrolado com a execução do CAR, quais sejam: a) larga identificação de sobreposição de áreas de uso privado sobre áreas de uso coletivo nos registros, b) instrumentalização do CAR como processo de regularização fundiária e de garantia de direitos de pequenos agricultores e povos tradicionais sem que, de fato, seja o cadastro garantia de direitos territoriais e da execução de políticas públicas para sua manutenção no longo prazo, como política de Estado; e c) sua função de identificar os passivos e transformá-los em ativos ambientais. O último fator aumenta o estoque de “bens naturais” identificados pelo mesmo cadastramento sem resolver as causas das violações de direitos e disputas territoriais, bem como as degradações ambientais, que fizeram destes bens antes um passivo, logo prejudicando a integridade ambiental e dos direitos a ela correlacionados.
O último ponto, fator de importância jurídica e política central no Artigo 41 do Novo Código Florestal, é, também, ponto de partida para as novas bases da circulação e troca de valores sobre capital natural no Brasil, e do Brasil para o mundo. Para esta dinâmica, tem-se a própria terra, mas, mais especificamente o uso que se faz dela – seja para a construção de territórios de vida coletiva ou para a valorização de propriedade seletiva baseada em regimes proprietários e de acumulação – a base para a regulação ambiental. Sendo assim, comercialização baseada em conservação da porção de vegetação nativa, ou restaurada, presente em terra privada ou coletiva a partir da efetividade e eficiência econômica da mesma terra ao se evitar e monitorar desmatamento e degradação é o principal objetivo do CAR via instrumentos que dele dependem na legislação ambiental, que são as Cotas de Reserva Ambiental (CRA) e os Programas de Regularização Ambiental (PRA). São esses os pontos chave para o desenvolvimento e a transição para uma economia sustentável, segundo os próprios órgãos ambientais brasileiros e instituições financeiras internacionais, tais como aquelas que são parte do Sistema Banco Mundial2. A questão que tem se colocado por vários movimentos e coletivos sociais e políticos críticos sobre o uso dessa lógica para a garantia de um meio ambiente saudável aliada à manutenção de direitos territoriais, especialmente os coletivos, é que o casamento da transição do monitoramento dentro de uma lógica de incentivos financeiros como estratégia para regularização fundiária pode ser delicado para o futuro dos territórios amazônicos.
Sobreposições e Disputas sobre Uso da Terra: CAR não pode significar padronização e criminalização
Uma dinâmica verificada ao longo de quase três anos de várias iniciativas e políticas públicas ambientais, especialmente no nível estadual, de implementação do CAR é a sobreposição de terras. A sobreposição traz de maneira mais profunda a interposição de formas de uso da terra, de acordo não só com as categorizações agrárias e jurídicas, mas, principalmente, consoante com os grupos sociais e culturais que nela vivem. Por ter uma característica auto-declarada, de delimitação geoespacial e por abrangência em polígonos (área média da propriedade por pontos espaciais específicos e fixados em um terreno), o CAR acaba trazendo uma radiografia dos problemas de sobreposições de terras na Amazônia, uma realidade que o Programa Terra Legal, do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), desde sua criação em 2009, vem tentando resolver ainda sem muito sucesso.
Na área da Rodovia Transamazônica e da BR-163, de ocupação teoricamente planejada em vários momentos de atuação e incidência direta do Governo Federal na Amazônia brasileira, isso tem sido notado. Entretanto, a não ser pela ação dos movimentos sociais, dos assentados, e de comunidades tradicionais em geral, a sobreposição é muito pouco debatida em seu caráter político e de justiça social, ambiental e agrária sob o prisma do CAR. Quando se nota o grande emaranhado dominial, ou a inexistência documental dele, pela constatação, por exemplo, de que um território quilombola não homologado está sobreposto pela posse de uma ou várias famílias ou de uma propriedade particular, a primeira reação é pensar que o CAR nos ajuda a visualizar e a “espacializar” o problema. Isso pode até ser verdade. Contudo, é importante lembrar que a espacialização desses conflitos e de suas consequências para a própria reprodução social e cultural de vários grupos já é por eles vivida cotidianamente, e não é o CAR que desvela isso. O CAR registra o processo, por vezes, com incongruências a depender de quem mapeia.
Por exemplo, para que uma associação ou cooperativa quilombola ou de pequenos agricultores possa ter a Licença Ambiental Rural (LAR), que normatiza e normaliza as atividades rurais em sua área de produção, é preciso estar cadastrado e inscrito no CAR, onde se comprova que são respeitadas as Áreas de Preservação Permanentes (APPs) naquele território, bem como a manutenção das Reservas Legais (RL) em relação às APPs. Sem LAR, não tem comercialização. Sem comercialização não tem estratégia de comércio verdadeiramente justo, realizado diretamente pela comunidade como forma de fortalecer sua permanência e direito à terra. De forma prática, de acordo com as regras atuais, sem CAR e sem LAR, muitas das estratégias de sobrevivência de comunidades e pequenos produtores, inclusive via políticas públicas, ficam inviabilizadas.
Dessa forma, ainda que miremos nos pontos positivos da documentação da espacialização do conflito, após a identificação de uma sobreposição, não há regra clara sobre os procedimentos que os próprios órgãos governamentais, principalmente, os estaduais e municipais que licenciam atividades rurais, devem agir para que na última instância federal a questão territorial possa ser solucionada, respeitando-se a justiça social e agrária. Quando se aponta que não há procedimentos claros, afirma-se que não há uma amarra legal que faça os governos estaduais e municipais agirem para além do incentivo à implementação do CAR. Tal incentivo hoje se liga à descentralização da fiscalização ambiental com base em informações que não podem garantir quem realmente desmatou ou degradou (ato nem sempre detectado por imagens satelitais, exigindo avaliação qualitativa e progressiva) e à implementação de medidas para que a propriedade ou a unidade coletiva se adeque ambientalmente e esteja em conformidade com aquilo previsto no novo Código Florestal. Não há apoio para a resolução de questões fundiárias e, pior, prevê-se que a própria fiscalização e adequação ambiental (medidas para a regularização) podem representar incentivos positivos, sendo etapa crucial para a regularização fundiária propriamente dita.
Ora, assim se a comunidade quilombola sobreposta tem em seu CAR que sua RL não corresponde aquilo que deveria ser conservado, quase sempre por seu próprio ônus, ela terá problemas em ter seu registro definitivo de CAR. Se a comunidade não tiver titularidade ainda, terá mais problemas ainda para efetivar seus direitos territoriais. Sendo assim, recai também sobre as comunidades o esforço de ter que arcar com padrões de uso da terra e de conservação ambiental para ter direitos garantidos. Há todo um arcabouço de políticas públicas via parceria com iniciativas nacionais e internacionais de organização não-governamentais com programas governamentais, especialmente estaduais como é o Programa Municípios Verdes3 no estado do Pará, para que tais medidas sejam implementadas. Mas, a pergunta é: os conflitos fundiários, nos quais se enquadram de maneira mais estabelecida e estrutural as sobreposições no espaço amazônico, devem ser resolvidos por instrumentos de gestão ambiental e de controle territorial (monitoramento de desmatamento e degradação) por políticas que pretendem mais objetivamente conciliar a produção de larga escala, agrícola e madeireira, com a conservação ambiental? Não seriam estas mesmas lógicas que teriam incentivado as mesmas sobreposições? Ainda, e de maneira mais preocupante, teriam os quilombolas, os assentados, os pequenos produtores que acordarem um Programa de Regularização Ambiental (PRA), com aqueles que outrora os sobrepuseram, para ter suas terras e comercialização legalizadas e seu direito à permanência e ao uso da mesma terra fixados em um território especifico? Em adição, teria que ser esta mesma PRA gerida e tocada por práticas ambientais e agrícolas que quase sempre envolvem absorção de práticas e tecnologias daqueles que se sobrepõem aos territórios coletivos ou de grupos de interesses que estão associados a estes interesses, tais como grandes empresas do ramo de processamento de alimentos, empresas mineradoras, de logística etc?
Esperamos que essas dúvidas não se fixem como o tom da luta pelos direitos territoriais na Amazônia, que é mais que espaço de conservação e de oportunidade de expansão da produção, é espaço de vida e de formas distintas de usar e trabalhar a terra pelos grupos que dela e nela vivem. Como uma vez nos colocou Alfredo Wagner, a sobreposição de terras é parte da “agroestratégia” dos ruralistas e de grupos de interesse associados para avançar sobre os territórios, que possuem modos de uso da terra e do entendimento do que significa fazer parte de um território – e, não, ter um território – muito distinto dos primeiros (Wagner 2011). Sendo assim, gestão ambiental e controle territorial não são sinônimos de resolução de conflitos e, muito menos, de garantia de direitos.
É importante destacar e relembrar isso, pois solução para problema de sobreposição não deve se restringir à resolução técnica ambiental de uma ilegalidade, mas, sim, à resolução cautelosa de conflitos, que sempre dizem respeito a dinâmicas de poder, o que usualmente escapa da arena da legalidade e do “cumpra-se” ambiental, mas, está intimamente ligado à precaução para a garantia da própria integridade ambiental. Sendo assim, estas relações de poder podem se refletir (e se reproduzir) a médio e longo prazo de acordo com a maneira como se aplicar o CAR. Como o cadastro já aparece como consolidado para a obtenção de metas tanto na Política Nacional de Mudanças Climáticas, como nos próprios compromissos brasileiros frente ao Acordo Global sobre o Clima, que o país assinou em 22 de abril de 2016, dificilmente o questionamento de mecanismos que o encerram como lei, como é o caso do Código Florestal, irão revertê-lo ou anulá-lo como prática política. Também cabe destacar aqui que o CAR é atualmente a principal via de implementação da descentralização da execução de políticas ambientais para os estados e munícipios, incluindo neste processo a captação de recursos tanto para operacionalizá-lo, quanto para executar o monitoramento e a vigilância territorial e implementar políticas de incentivo à produção sustentável, as quais igualmente envolvem licenciamento. Como a região amazônica é aquela em que mais existe sobreposição de terras e onde a regularização mais se encontra atrasada, além de bastante judicializada, devemos ficar atentos para como estas formas de implementação do CAR podem em vez de garantir direitos, acelerar a reconfiguração do espaço produtivo amazônico. Isso pode fazer com que a suposta construção de qualidade ambiental pela união da conservação e da produtividade4 seja um mecanismo de gestão de direitos que em nada, e nunca, poderá substituir a tão desejada justiça ambiental e climática na região.
1 Professora e Pesquisadora Núcleo de Altos Estudos Amazônicos NAEA/UFPA; Grupo Carta de Belém. Contato: marcela.vecchione@gmail.com
2 Ver especificidades previstas em estudos e na estrutura de análise criada no Departamento de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Banco Mundial, em 2013, o Quadro Analítico sobre Governança da Terra (Land Governance Assessment Framework – LGAF), no link: http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/EXTDEC/EXTRESEARCH/EXTPROGRAMS/EXTARDR/EXTLGA/0,,contentMDK:22793966~pagePK:64168427~piPK:64168435~theSitePK:7630425,00.html.
3 O Programa Municípios Verdes é lançado em 2011 pelo Decreto Estadual 54/2011. Institucionalmente, o programa se apresenta como iniciativa de combate ao desmatamento no estado do Pará em iniciativa coordenada entre a sociedade civil (com forte atuação do Instituto do Homem e Meio Ambiente (Imazon) e apoio financeiro e técnico da The Nature Conservancy), Ministério Público Federal e o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), tendo como caso piloto a contenção do desmatamento pelo pacto entre produtores de soja e pecuaristas, o MPF, o governo do estado do Pará e a prefeitura de Paragominas. Como ponto central da execução do programa está a implantação do CAR e a descentralização da gestão ambiental para os municípios com base nos princípios de promoção do desenvolvimento sustentável aliado ao crescimento econômico do programa.
4 Esta afirmação sobre qualidade ambiental, produtividade e conservação pode ser encontrada no sítio web da Bunge sobre um sistema de governança ambiental desenvolvido para a região do Tapajós em associação com a ONG The Nature Conservancy. No link: http://www.bunge.com.br/Imprensa/Noticia.aspx?id=888